Outro dia dividi meus cômodos em dois. Ar e Terroir
A vela do Ar queimou serena, lenta, sem derramar cera alguma. Era a luz de um brilho vivo e constante. Era o ar da intelectualidade que pairava sobre minha cabeça e me deixava são, ainda que parecesse louco.
A vela do Terroir parecia descontrolada, cera para todos os lados, aos montes, sem cessar. Fogo dançando num bailado sem música, numa roda sem par. Ela se perdia, perdia a mim, perdia o descontrole do controlar.
Aparas não seguravam seus restos, por maior que fosse eles corriam para fora dela. Queriam mostrar rebeldia, talvez.
Várias velaz, várias chamas, várias posições. Sempre o mesmo tom. Nem semi-tons eram aceitos, quanto mais oitavas diversas. Tudo era o que era. Tudo estava como estava. Bastava ver para perceber que, daquela forma, nada mudaria.
Não eram os locais, não eram as velas, eram as chamas de mim. Percebe? As chamas.
Um queimar diferente, mas comum, afinal aos quarenta anos algumas coisas já são repetidas. Quase todos os setênios vividos, assim muitas chamam iam e voltavam.
Quarenta anos... Se divido por sete tenho cinco ponto setenta e um, ou seja: Cinco dos setes principais estão passados, o sexto em andamento e o sétimo bem próximo.
Devo preocupa-me?
Se sim, com os setênios ou com o fogo dividido em suas velas de supermercado. Sim, elas não foram feitas por nenhuma bruxa de terras distantes e muito menos foram benzidas por nenhum feiticeiro renomado e que tem seu nome ecoando pelos quatro cantos do mundo.
Depois dessa você pode pensar que são apenas duas velas. E acredite: Se pensar assim concordarei com você.
Se houver discordância será no fogo.
Um queima sorridente e tranquilo. O outro não queima, se derrete em si.
Liguei para antigos - e respeitados - mestres. Nenhum me atendeu. Todos mandaram o seguinte recado: - Não o atenderei. Não precisa de mim, mestre.
Eu, mestre?! Com todo respeito, mas beberam cachaça benta?!
Não sou mestre. Sou discípulo!
Quero ser discípulo!
Estou discípulo!
Liguei, de novo, para todos eles, mas parece que combinaram:
- O fogo que queima, apenas queima. Dê combustão forte e ele queimará forte. Dê combustível tranquilo e ele queimará tranquilo.
Entendi. Não entendi. Vou entender?
Recesso. Preciso voltar a caverna, ao ventre que me pariu. Preciso estudar a mim mesmo. Sem manual, sem idioma compreensível, sem meios, sem caminhos.
Volto, refaço o caminho ou faço o caminho?
E os bichos? E os monstros? Estudo-os para vencê-los ou apenas aceitá-los?
Estudo-os para acolhê-los ou apenas trancafiá-los?
Já baixei em muitos terreiros, usei muitos nomes, encorporei muitas entidades, mas e agora?
Minha missão será ser o anjo ou o demônio?
Serei o policial bonzinho ou o envocado?
Já viagei por muitos mundos, já adentrei muitas moradas.
Já dormi tanto em cemitério quanto em camas de lençóis egípcios de 300 fios.
Já fui pai, filho, amante, marido e até um qualquer.
Já fui muito conhecido, referência, como já fui um completo e sem atenção anônimo.
Já vesti bata, batina e até vestido de carnaval. Já fui Zorro e palhaço, Don Quixote de La mancha, Don Juan DeMarco e até Casanova.
É sério... Já fui lenta, mito e até disfarce. Já fui verdade e mentira, alto e baixo, vergonha e glória.
Derrotado e vencedor, já fui.
Hoje sou a luz de duas velas que não querem casar.
Hoje sou o bailar da chama que confunde o poeta.
Ainda não fui vento, mas já fui tempestado. Algumas vezes em copo d'água, outras de levar o apelido de vendaval.
Hoje sou isso. Pode por na minha conta que pago quando voltar.