Abrindo as portas.

Seja bem-vindo(a) ao meu Labirinto!
Aqui criador e criaturas se fundem e confundem até o mais astuto ser. Olhe querendo ver e não tema o que pode ser visto, afinal luxo e lixo diferem em somente uma letra - nem tão diferentes assim. Uma dica: Se perca para se achar. Se ache e pouco se dará a permissão para perder-se. Permita-se as permissões a bem das possibilidades.
Bom mergulho andarilho(a)!

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Noites de Watermelon Man I

Noites de Watermelon Man I
A cidade estava cinza quando apertei o botão para desligar o alarme de Coltrane e abrir suas portas.
Estava mais frio do que pensei e aquele terninho de R$1,99 não seguraria a onda daquela noite. Mesmo estando, ainda, na porta de casa resolvi não voltar para pegar algo mais grosso e condizente.
Queria aquele shape, eu estava bem.
Calça de couro surrada, botas cowboy, camisa com caricatura de Miles e blazer carijó. Estava bem.
Arrumo o sax no banco de trás, jogo a bolsa com palhetas, partituras e cigarros.
Ao sentar e segurar o volante nas mãos paro alguns segundos antes de virar a chave e olho para aquela rua vazia, aquele tempo neblinado. Parecia um filme. Um filme que eu vira quando criança e via se repetir. Um bluesman indo, sozinho, para a noite.
Conferência do interior, chaves no contato, partida acionada. Dois minutos para um breve aquecimento, coloquei o cambio no D, acionei acelerador e Coltrane seguiu em macha.
Alguns poucos quilometros e estávamos no destino.
Estacionei Coltrane, liguei o alarme e me despedi. A noite seria longa.
Entrei naquele lugar minúsculo que era reconhecido como uma das melhores casas de jazz da cidade.
Arrumei Martim. Um saxofone Frank Holton de 1942. Som encorpado, mas acadêmico. Era preciso uma boquilha de metal, Mayer 6, para que seu som ficasse mais próximo ao que os ouvidos mais modernos estavam acostumados.
Com Martim em seu canto, devidamente protegido de bebados e descuidados fui para o bar.
Uisque, olhares e espera.
Eu tocaria com playback. É ruim, mas não estar com banda tem algumas vantagens e não somente desvantagens.
Seriam quatro sets de 40 minutos com pausa de 20. O repertório seria composto por Miles, Cannonball (Julian "Cannonball" Adderley), Coltrane e tantos outros. Sempre com uma puxada mais ballads que jazz.
Aquela noite fria pedia bebida, conversa e sexo.
Aquela noite fria pedia aconhcego, algo quente e diálogos filosóficos.

Acabei minha bebida, olhei a casa relativamente cheia. Casais eram maioria, mas muitos solteiros estavam ali. Talvez por ser início de semana e poucos lugares abrirem.
Fui lá fora, fumei meu último cigarro, recusei, como sempre, o bequi que estava rodando e entrei.
Fiz sinal para o caixa tirar o som ambiente, tirei a tela de proteção do meu note, liguei o tablet, o microfone, dei start em tudo e enquanto o playback fazia a introdução eu cumprimentei à todos, fiz algumas escalas como aquecimento e entrei no tempo certo.
Misty (com puxada Dexter Gordon) era uma boa música para começar.

Eu tocava sem ser tocado. Cumpria meu papel de operário da noite. Degralizava as possibilidades de cantadas entre os casais, fornecia argumento para conversas, tapetes para as viagens dos solteiros e embalo para um e outro beber.
Em outros dias eu estaria, na frente de todos, fazendo amor com Martim sem qualquer pudor, estaria pensando nos 2.4 do motor de Coltrane. Mas naquele dia eu estava tão cinza e frio quanto a noite. Meus dedos iam automaticamente nas teclas de Martim. Ele respondia, também, sem amor. Acabou a paixão? Podia ser.

Dois sets e nenhuma novidade. Lá fora, um cigarro, a recusa do bequi, um ou outro querendo saber de Martim e Coltrane a minha espera. Não deixava de olhar para ele e estacionar bem a minha frente facilitava essa paquera.
Eu abria sua porta, seu banco de couro me acolhia. Uma ou outra vez ligava seu rádio e por ali, também, conversávamos.

No terceiro set uma moça veio me perguntar sobre jazz, Nova iorque e música. O papo não engrenou. Seu perfume de cerveja, seu olhar fixo demais e total falta de química me fez voltar para o último set da noite com ela na prima fila.
Pausa e mais conversa. Eu não estava ali, será que ela não percebia?

Abri o quarto set com uma versão de Watermelon Man tirada do repertório de Big Mama Thornton. Mesma puxada, mesmo ritmo, mesmo blues.
Tocar aquela música mexeu comigo, parece que Martim se animou, aqueceu e fui com ele. A casa já estava quase vazia, os poucos que faziam a noite balançavam ao som daquele vendendor de melancias.
Eu me empolguei e comecei a falar algumas coisas nos intervalos da música. Fiz minha música. Bebado? Talvez.
Misturava português com um nada de inglês e menos ainda de francês. Vendia minha melancia naquele final de noite.

Ao final do quarto set, arrumei Martim. O agasalhei na bag rigida vinda de Paris, dei boa noite e o deitei.
Entrei em Coltrane, virei a chave, tomei mais um gole de uisque e segui.
As ruas estavam vazias de gente, de alma, de mundo.
Eu estava vazio, mas nem toda noite tem histórias poeticas e mirabolantes. Nem toda noite tem samba. Na realidade a maioria das noites são cinzas, frias e cheias de blues.

Estacionei Coltrane, entrei. Me estacionei. Dormir aumentariam as possibilidades para que a próxima noite fosse melhor.
Vamos ver.

Ass. Um Watermelon Man

(postagem dedicada ao amigo Yuri - Obrigado pelos incentivos, bons conselhos, papos sempre agradáveis e presença ímpar - Somos Watermelon Man. Yeah brother san!!!)

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails