Abrindo as portas.

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Aqui criador e criaturas se fundem e confundem até o mais astuto ser. Olhe querendo ver e não tema o que pode ser visto, afinal luxo e lixo diferem em somente uma letra - nem tão diferentes assim. Uma dica: Se perca para se achar. Se ache e pouco se dará a permissão para perder-se. Permita-se as permissões a bem das possibilidades.
Bom mergulho andarilho(a)!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

02. A Casa de Madalena - O quarto

02. A Casa de Madalena - O quarto
Tóc, tóc, tóc!
Eram fortes as batidas na porta do meu quarto. Fingi que não ouvi, afinal era domingo.
Tóc, tóc, tóc, - Mada, vamos que está na hora da missa!
Era meu pai, só ele me chamava de Mada. Eu era duas naquela família. Para papai era Mada, para mamãe Lena. Para mim mesma eu não era ninguém.
Papai era assim, fazia questão de ir a missa de Domingo. Mamãe era filha de Maria, mas... não deixava de reclamar todas as vezes que tinha que ir às reuniões do grupo.
Minha mãe nasceu e se preparou por toda uma vida para casar, ter um marido e cuidar dele, o resto era só, como diz a propaganda: Foto meramente ilustrativa, ou seja,  resto. E ela nunca gostava de nada que fosse resto. Às vezes tenho pena do meu pai, mas as vezes tenho pena da minha mãe, mas a verdade é que, às vezes, tenho pena da máquina de escrever...
Tóc, tóc, tóc Agora eram fracos. - Lena, filha... Era minha mãe. Devia ter visita em casa. Sua voz estava doce demais.
- Já vou... Falei fingindo voz de sono.
Me virei para o lado, ia adormecer quando Liko, meu urso de pelúcia e plástico, e que tremia de frio, quando apertado um botão, me despertou o mundo proibido.,
O joguei para o lado, mas qual mulher de marinheiro logo o peguei de volta. O que ele podia me dar eu queria receber. O que eu queria receber... Só ele podia me dar.
Não ouvi a máquina de costura da mamãe, não ouvi a de escrever do papai, mas a tremedeira de Liko ouvia-se a quilômetros de distância...
O pressionei entre as pernas e silenciei... Ele estava mudo, mas ela estava tão ou mais falante que bêbada a beira de cais.
Tóc, tóc, tóc. De sobressalto protegi Liko e com voz embargada gritei: - Estou quase... pronta.
Papai respondeu: - tá estamos indo então e a encontramos lá.
Bem feito! Nem respondi e dei toda a atenção ao barulho do carro que saia da garagem somente uma vez por semana.
Não mais. Não menos. Nunca mais que uma. Papai sempre andava de ônibus. Era mais seguro, gastava menos e... do jeito que ele dirigia, também, era mais rápido. Carro era para ocasiões especiais! Como andar três pequenos quarteirões para ir a igreja. Papai não acumulou posses nessa vida, mas na igreja ele era o filho do deus e precisava mostrar que seu pai fora generoso consigo.
Ele assumia-se católico, ia as missas, mas sempre que o livro estava pronto, levava a um numerólogo para saber se o título estava de acordo, depois e sem voltar com ele em casa, passava numa mãe de santo para benzê-lo e por fim, dava alguns exemplares a uma "amiga" cartomante para que ela "distribuísse". Eu não falava nada, só ouvia o barulho da máquina de escrever sendo surrada ao bel prazer dele, sentia dó dos tecidos que minha mãe enfiava agulhas, linhas e ainda conferia para ver se ficaram bons...
Liko não me deixou desviar o pensamento e como se tivesse vida própria, de amante sem tempo, aumentou a vibração.
Sofri por dois minutos. Amei, odiei, amei de novo, odiei de novo. Pensei mil coisas, dois minutos e dois mil homens. Todos ali. Todos meus. A se consumirem em mim.
No fundo eu sempre quis ser mulher da vida, no fundo sempre quis ser mulher na vida.
Dois minutos e eu pensando em mulher... Liko me fazia mulher em dois minutos. Melhor que sexo de saquinho, maior que bonecas de cabeças duras e braços largos.
Quase morrendo, quase pronta para o meu amante maior, Bhoeme e... Tóc, tóc, tóc -  Mada!
Não acredito! Joguei Liko, sem desligar, para o canto da cama, me enrolei no robe e fui até a porta pronta para cometer um assassinato. Afinal, depois eu estaria na igreja e poderia me confessar, pedindo a absolvição de Deus.
- O que você quer, Flávio? Perguntei com a faca na mão e já enfiando na jugular daquele que se fez passar por meu marido e afugentou meu amante.
- Seu pai mandou que eu viesse te acompanhar. Ele falou e já foi forçando a porta para entrar. Ensanguentado, cairia bem no meio da minha sala. Primeiro eu olharia toda aquela cena, depois ficaria mais dois minutos com o meu amante. Pediria que Liko limpasse tudo e sugeriria que Bhoeme me possuísse enquanto o sangue ainda escorria quente...
- Flávio, dois minutos! Falei enquanto ele sentava no largo sofá da sala. E quando ele me deu as costas, ainda cambaleando, eu dei mais alguns golpes. Sabia que depois eu teria que chorar muito para convencer a polícia de que tudo não passou de um grande susto.
Enquanto eu escondia o Liko, Bhoeme sairia pelos fundos. O beijaria intensamente e pediria para ele ir, mas o faria prometer que voltaria.
- Você ainda nem está pronta.
- Ah Flávio, vai catar coquinho, moleque!
- Moleque, não. Tenho 19 anos e sou mais velho que você! Homens... não aceitam a verdade. Sempre tem que ser vistos como generais de exército de muitas batalhas... Um general! Muitos homens...
Puxei meu braço das mãos dele e olhei bem fundo em seus olhos.
- Me respeite! Disse firme e ele me soltou... e ainda pediu desculpas.
Ah! Ah! Ah ! Bhoeme me daria um tapa na cara e ainda me faria ajoelhar antes que ele partisse... Liko desligaria sem nem me dar atenção, mas Flávio me pede desculpas e ainda abaixa a cabeça...
Eu sentei sobre seu corpo, pois estava ensandecida e apunhalei ainda mais. Ele cairá de costas e eu sentia a faca tocar seus ossos. Bhoeme me segurou e disse: - chega da sede de sangue que agora quero te beber. Me atirou ao lado do já defunto e se jogou sobre mim. Seu peso, seu perfume barato, certamente dado por alguma qualquer como eu, misturava-se ao cheiro do produto que usava para manter seus cabelos impecavelmente arrumados...
- Vai Mada!
- Ah Flávio! Eu disse e sai andando para o quarto. Ia me trocar. Vi. Não. Eu não vi que Flávio vinha atrás de mim e já entrei no quarto tirando o robe; corri para a cozinha, eu tinha que me lavar... Ligar para polícia, arrumar um álibi...
Flávio estava encostado na porta e eu tirei a parte de cima da minúscula camisola bem devagar...
Ele estava atônito, incontido, pasmo, mas não duro. Não pronto. Generais sempre estão prontos. Para as guerras.
Me virei para abrir o armário e fingi que ainda não havia visto-o. Dois minutos! Ele teria para me convencer a trair Bhoeme, dois minutos. Liko nada falaria e se Flávio fosse bom o deixaria voltar ao meu quarto. Mas... teria que jurar não falar nada a Bhoeme. Se bem que. Bhoeme... Saberia de tudo só de olhar em meus olhos... Ele era vivo! Único homem que já tive até hoje. O único de verdade. Foi ele quem usou meu pai para me dar o Liko. Sei que foi.
Abri a porta do armário, peguei uma blusa e tirei o pequeno short que me escondia a calcinha de algodão. São recomendadas pelos médicos e como não quero ir a esses tarados, faço tudo que mandam.
Flávio se alisava e nem percebia que, pelo mesmo espelho que ele me olhava eu o via também.
De calcinha, quase nua, bicos rijos; quase pronta. Comunicaria a ele o final de seus dois minutos e o deixaria falar. Se fosse convincente o mandaria entrar, se vacilasse avisaria que Bhoeme saberia de tudo e seguramente passaria a navalha em seu pescoço.
Virei rápido e mais rápido ainda soltei um Ah! de espanto e surpresa. Eu fingi a morte ao palidecer minha pele, roborizar meu rosto e arregalar meus olhos cor de céu. Queria que fossem rosas. Cor de menina...
Flávio sorriu. Era sorriso de quem sabia amar, mas morto não ama. Bati a porta e peguei Liko por dois minutos mais e em mais dois minutos eu estaria na missa. Não para confessar. Se cometi algum crime me redimi a tempo. Desliguei o Liko e sai. Para a Igreja.
E Flávio? Veio atrás de mim. Era só isso que sabia fazer.
 
MadalenaDee
Mada por parte de pai, Lena pela da mãe e Dee por pura rebeldia.
Para os íntimos, Ma dá. Para os inimigos, Me dá. Para os neutros MadalenaDee.

 
By
Aderlei Ferreira
08/FEV/2006

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