Abrindo as portas.

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Aqui criador e criaturas se fundem e confundem até o mais astuto ser. Olhe querendo ver e não tema o que pode ser visto, afinal luxo e lixo diferem em somente uma letra - nem tão diferentes assim. Uma dica: Se perca para se achar. Se ache e pouco se dará a permissão para perder-se. Permita-se as permissões a bem das possibilidades.
Bom mergulho andarilho(a)!

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

03. A Casa de Madalena - A sala de jantar

03. A Casa de Madalena - A sala de jantar
Até a noite, aquele fora uma dia comum. Seu fechamento normal.
Meu pai disse chega. Minha mãe desliga tudo e vai servir o jantar. Jantamos.
Meu pai pega uma livro e vai ler, minha mãe vai lavar a louça e eu? Fico num canto qual uma mesa de canto que não é jogada fora só porque veio sozinha de Paris.
Passado um tempo, minha mãe volta da cozinha. Havia lavado tudo, arrumado tudo, cuidado de tudo segundo as expressas ordens de meu pai. Ele não gostava de louça dormindo na cozinha.
Minha mãe avisa que acabou, meu pai não responde. Fecha seu livro e já sem paciência pergunta por seu café.
Oras, depois do jantar, ele sempre lia um livro e enquanto ela cuidava de tudo, ele tomava uns dois goles de café. Não podia beber mais que isso. Tinha gastrite. Segundo ele, a culpa era de minha mãe. Segundo ela a culpa era minha, segundo eu a culpa era de Bhoeme que insistia em não me tirar dali.
Já havia sinalizado que ele podia raptar-me e me levar, em seu navio negreiro, para conhecer o mundo. Não me importaria de roubar para comer, trapacear para dormir e enganar para viver. Já fazia isso.
Ela pediu desculpas por ter esquecido do café, disse que a carga daquele dia fora grande e perguntou se ele ainda queria seu café. Hein, bem, quer seu café? Ela perguntava com uma voz que misturava doçura, culpa e desejos de servir. Ele nada respondeu e ela logo voltou com a chicara soltando fumaça. A mesma fumaça que ele soltou ao indignar-se pelo café ter demorado e por, aquela hora, ele já não poder mais beber. Fez um sermão explicando a ritualística de uma casa e quão subserviente a mulher tem que ser a seu marido e senhor.
Meu pai era o louco mais são que já vi. Minha mãe era a sã mais louca que eu já pude analisar. Queria ser pediatra, mas depois que descobri que as crianças já nascem fazendo merda, desisti. Agora meu foco é outro. Quero ser psiquiatra. Tenho talento. Adquiro bagagem.
Meu pai levantou-se e foi deitar. Minha mãe não sentou e foi junto. Já na porta me olharam e eu, me fazendo de morta, levantei qual zumbi e fui para o quarto.
Deitei em minha cama, ia escrever em meu diário, mas desisti. Troquei de roupa algumas vezes, algumas vezes conferi se estava muito gorda, barriguda, com pneus, olheira, flácida nos braços, pele seca...
Tirei toda a roupa, tomei banho, passei creme, experimentei quatro camisolas e escolhi uma que não tinha experimentado.
Deitei, levantei, deitei, levantei. Arrumei os cabelos. Estava inquieta. Ouvi barulhos?
Não acredito, meu pai estava usando minha mãe. Antes que eu conseguisse sintonizar eles pararam.
Por isso não caso. Só quero amantes. São mais demorados e quando não são, são mais intensos.
Bhoeme passava noites e noites comigo e mesmo estando frio, ele me colocava quente. Quando estava quente ele começava a falar francês e me fazia mais quente ainda.
Salvo a estranha higiene dos franceses, eles são belos amantes. Não disse bons. Disse sim, belos.
Bhoeme era belo e bom. Mas não falava francês. Fingia que falava e aquilo para mim bastava. Sempre pedia para ele falar mais. Sempre que aprendia uma nova palavra ensinava a ele. Bhoeme, meu belo - e bom - francês.
Seus cabelos bem rentes a cabeça e cheios de pasta, e gel, seu bigode fino e seu olhar de cafajeste apaixonado me encantavam.
Nunca sabia quando ele viria. Nunca sabia quando ele voltaria, mas sempre sabia que se não viesse estaria preso em algum porto por guardas costeiras ou morto em alguma briga de navalha causada por uma ou outra vagabunda dessas muitas que ele tem e insiste em dizer que é tudo mentira e intriga da oposição.
Já encomendei sua lama várias vezes. Bastava ele demorar um pouco mais e lá ia eu rezar por uma passagem branda rumo ao paraíso. Desejar o inferno para um homem desses é presente. Não reclamo o defunto, mas não encomendo a alma. Aliás, não cabia a mim reclamar o defunto. Não era mesmo meu.
Encomendei sua alma muitas vezes achando que não voltaria mais.
Mais barulho. Dessa vez levantei correndo e colei meus ouvidos na parede. Logo desisti, pois seria humanamente impossível meu pai fazer aquilo mais de duas vezes num mesmo mês.
Ouvi. Não ouvi. Deitei, levantei, deitei de novo. Deitei para dormir. Olhei para Liko, meu urso de pelúcia que vibra e é melhor que qualquer boneca de cabeça grande ou braço largo, o empurrei com os pés.
Não adianta. Quando uma mulher não quer, é porque ela não quer e é mais sábio o homem se manter longe. Mas homem sábio sem mulher? Tão estranho quanto a higiene das franceses...
Liko não reclamava. me entendia, me entedia... Sem pilha era melhor, com pilha era o pior.
Mais barulho, levantei. Mais barulho! Coloquei o robe. Mais barulho? Sai do quarto e fui ver o que era.
Cheguei na sala de jantar e quase chorei ao ver as flores, a decoração de velas e sentir o cheiro do barato charuto de Bhoeme... Me encantei e, como todo mulher seduzida, fiquei mole, trêmula e pronta...
O que você quer na sala de jantar a essa hora Mada? Assustei-me com meu pai bebendo o frio café que ficara lá. Tão jogado quanto a mesa de canto que veio sozinha de Paris. Nada respondi e ainda tentei ver se Bhoeme ainda estava por ali, mas entendi que meu pai havia impedindo-o de dar sequência a sua noite de l´amour comigo. Se a dele era curta, a minha não podia existir.
Fui deitar. Dormi. Não levantei.

MadalenaDee
Mada por parte de pai, Lena pela da mãe e Dee por pura rebeldia.
Para os íntimos, Ma da. Para os inimigos, Me dá. Para os neutros MadalenaDee.

By
Aderlei Ferreira
09/FEV/2006

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