Abrindo as portas.

Seja bem-vindo(a) ao meu Labirinto!
Aqui criador e criaturas se fundem e confundem até o mais astuto ser. Olhe querendo ver e não tema o que pode ser visto, afinal luxo e lixo diferem em somente uma letra - nem tão diferentes assim. Uma dica: Se perca para se achar. Se ache e pouco se dará a permissão para perder-se. Permita-se as permissões a bem das possibilidades.
Bom mergulho andarilho(a)!

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Quem me quer?

Aquele domingo estava especial. Sol, calor, brilho no ar e poesia na alma.
Acordei cedo e como não tinha muito a ser feito resolvi passear de moto. Pegar estrada, dar um gás.
Aquipamento em cima, motor aquecido, estrada!
100Km/h, 170Km/h e eu queria mais. A 200Km/h a moto, que estava parada havia um sem fim de tempo e fora consertada há poucos dias, apresenta um problema.
Inesperadamente saio de um lado para o outro da pista em fração de segundos. Sou lançado à metros de distância mato adentro.
A moto passa por cima de mim, eu acho que quebrei aqui, fraturei ali, fissurei acolá.
Desacordado não tive como pedir ajuda e, naquele local, a tantos metros da estrada, dificilmente alguém me acharia. Seguro.
Num desmaio profundo, permaneci ali por algumas horas até que um avô para no acostamento porque seu neto queria fazer xixi. Envergonhado de tudo, o garoto entra um pouco na mata e mesmo concentrado naquela tarefa ao mesmo tempo constrangedora e prazerosa ele sente o forte cheiro de queimado, gasolina e fumaça. Roda o rosto em busca da origem e vê peças espalhadas. Acompanha o rastro do acidente e seus olhos me acham caído mais à frente.
Susto, choque, inquietação e correria.
Ele vai ao avô e relata sua visão. O avô corre para conferir. Constata que estou desacordado e liga para a polícia.
Foram poucos minutos para, de vazio, ermo, o lugar virar ponto turístico para curiosos. Pessoas que tinham familiares a milhares de quilômetros dali paravam para ver se podia ser seu ente, que nem era tão querido assim.
Outros aproveitavam o momento para exercitar o jornalista que há dentro de si e perguntavam sem parar.
A polícia, os bombeiros e outros profissionais nada diziam. Estavam preocupados com o meu estado. Que aparentemente não havia quebrado nada, mas a contar pelo estado da moto eu devia estar em pedaços por dentro.
O macacão de cordura, feito sob encomenda e que custara uma pequena fortuna, era rasgado por uma tesoura sádica, impiedosa, rápida e faladeira: grrrrrrrrrrr.
As vozes eram muitas, mas confesso que a nada ouvia, via ou sentia. Eu estava em outra.
Meus documentos diziam quem eu era, mas não diziam de quem eu era.
O celular fora destruído na queda de muitas voltas?
Quem sabe?
Mesmo sendo um domingo de manhã aquele trecho da estrada estava completamente vazio quando a moto apresentou problemas mecanicos, sobretudo por falta de uso e, talvez, manutenção pouco cuidadosa da parte do mecânico.

Do acidente até a chegada do socorro o cronômetro marcou exatas 4 horas.
Precisaram de mais duas para que a ambulância estivesse em condições de partir comigo para o hospital mais próximo.

No hospital, os médicos receberam-me com frases de preconceito do tipo "esses motoqueiros... Andam como se quisessem se matar", "são uns loucos", "correm até não poderem mais, aí quando dá essas zicas correm pra cá e a gente é que tem que dar um jeito na vida deles", "chama o dr. Fulano que eu não vou mexer nisso, não. Eles fazem as cagadas e eu tenho que salvar a vida deles?! Chama o Fulano!".
A assistente social preocupava-se em achar algum familiar. Apesar dela ter visto uma carteira de plano de saúde precisava de alguém para fazer todo o tramite. or uma questão burocrática, ela não podia fazer.

O cronômetro não parou e com 10 horas do acidente até aquele momento eu só dormia. Nada acontecia. Bem provavelmente eu morreria por ali mesmo, seria enterrado como indigente e estaria tudo certo, afinal a saúde pública sempre faz o melhor por seus cidadões. Além de providenciar a morte, providencia o enterro.

A assistente social sentia algo dentro de si e não desistia de procurar alguém mais que respondesse por aquele alguém menos deitado ali.
Negro, aproximadamente 1,70cm, forte, acidentado de moto.
Carteira de identidade número X, habilitação número Y.
Jogou meu nome na internet e só conseguiu coisas vagas.
Facebook fechado a não amigos, logo não poderia nem usar a lista de contatos para tentar um contato.
Orkut inexistente sob aquele nome.
Ela ficava nervosa e mais nervosa ainda por não ver os médicos fazerem nada. Um jogava para o outro que dizia não querer cuidar daquele caso.
E eu? Eu estava em outra.

Após o primeiro balanço da moto e o seu direcionamento para o acostamento eu não conseguia controlá-la.
Fui arremessado e subi muito alto, mas não desci.
Num piscar de olhos eu sai da situação da estrada e fui parar em uma recepção com móveis antigos, escuros, ar pesado e pouca luz. Uma freira taciturna me recebeu. Sem muitas explicações pediu que eu esperasse. Apontou uma cadeira de madeira, envelhecida e estofamento de couro azul-marinho-tristeza.
Claro que eu não sou bobo e logo percebi que estava no céu, ou seja, fiz caca e morri. Danou-se, negão!
Sentei na tal cadeira encolhido e tão gélido quanto uma criança que é posta para pensar após um inocente e sem tamanho erro, meus pensamentos rodaram o mundo de mim mesmo. Família, pessoas queridas, vida. Tudo era cojitado. Claro que ao melhor estilo Aderlei: Tudoaomesmotempoagora. Sem espaço ou pausa para não perder tempo.

A freira olhava alguns papéis, olhava para a minha cara, ficava fechada, mas não fazia cara de reprovação.
Nossa, que ar pesado! Que angústia!
Eu estava tão nervoso que nem tirei as luvas. Cheguei de macacão completo e assim continuei.
Depois de olhar livros, papéis soltos, solicitar mais papéis e chamar uns e outros ela, fechadíssima, pede que eu me dirija ao guichê 21.
A olhei como quem diz: - Você acha que eu venho ao céu todos os dias? Onde é o tal guichê 21?!
Parece que a dona lia meus pensamentos. Apontou para um corredor à direita. Muitas salas. Placas de números na porta e lá vou eu.
Confesso que estava triste, afinal quem quer morrer de bobeira, assim?
Mas respirei fundo e fui encarar a minha sina, quão antes acabasse aquilo, antes eu poderia me achar. Em verdade, poderia fazer o que eu fazia de melhor: Me readaptar. Readequar.

Foi uma outra freira quem me recebeu. Alta, bonita, um ar angelical. Voz empostada, firme, olhar maduro, ombros bem posicionados, mas sem brilho algum. Não falo de sexaple, falo de um brilho que só a maça tem, que só carr novo tem, que só mulher feliz tem. Fica espalhado na pele, no olhar, no ar. O ar ali era pesado demais para qualuer brilho em qualquer pessoa...
Entrei. Ela fez sinal para eu sentar e antes que eu falasse qualquer coisa ela disparou.
- Acreditamos que houve um engano, seu Aderlei. O senhor não deveria estar aqui.
Pensei: - Como assim não estar aqui?! Ah, sim. Ótimo! Eu não tinha que ter morrido. Ainda.
Ela interrompe meu pensamento e segue.
- Seu lugar é no inferno. Não no céu.
Puta merda! Pensei.
Ela levantou a cabeça com ar de reprovação pelo baixo calão e, séria, fechada e sem me olhar muito seguiu:
- Veja o senhor, não há como estarmos errados. O senhor tem mais de 470 requisições (e solicitações fervorosas) de pessoas pedindo que o senhor vá para o inferno.
Isso é muita coisa para um homem que não tem muitos funcionários, família grande, é síndico de prédio ou presidente de sindicato, seu Aderlei.
Veja (ela segue): Mulheres, profissionais diversos, amigos. Muita gente.
Meu mundo caiu. Achei que encontraria Maysa, mas não será dessa vez.
Até deu uma vontade de chorar, mas meu choro não sai tão fácil. Se segurou sozinho dentro de mim sozinho.
- Olha - ela continua - , o senhor não tem nenhuma prece pedindo um lugar no céu, logo, sem reservas, entende?
Eu não respondi. Só a olhava. Eu confesso que sabia de algumas requisições, mas 470 é, realmente, muita coisa. Melhor não contra-argumentar.
Para variar, até no céu, segui o meu padrão em situações de stress: Fui direto, um pouco grosso e queria resolver logo. Tá, tá bom. Fui bastante grosso. Um ouriço!
- Tá, se eu não tenho vaga no céu para onde vou?
Ela me fitou por alguns segundos. Será que desaprovou a minha costumeira grosseria?
Sem soltar uma palavra, ela aperta um botão e dois homens aparecem. Seguranças.
O interessante é que os seguranças no céu, são iguais aos seguranças de prefeituras: Baixinhos, gordos, sorrientes e... falantes! Até demais.
- Por favor, houve um engano e o seu Aderlei tem que ser conduzido para o inferno. Lá é o lugar dele.
Pronto. Gelei.
Um deles me toca e, de novo, num piscar de olhos eu já estava em outro lugar.
Claro, luxuoso, tapete vermelho e uma recepcionista de tirar o fôlego. Sabe, dessas que ficam em lojas que você sempre quer ir sozinho? Levar mulher junto, nem pensar! Vai que.
Estatura mediana, olhos claros, roupa colada no corpo, seios fartos, decote provocativo e coxas de "matar papai".
O tapete tinha uns dez metros, era macio. Andei por ele até chegar naquela visão de paraíso que sorria para mim.
Dentes brancos, olhar expressivo e ar totalmente 3D (disposta, disponível e à disposição).
Com graça, bom tom e "toda aberta" ela me recebe:
- Dr. Aderlei! Seja muito bem vindo! É uma honra conhecê-lo. Me desculpe, mas confesso que estou emocionada.
E eu confesso que fiquei sem jeito. Nada respondi.
Aquilo era o inferno?! Me perguntei.
Gente, se eu tivesse que fazer uma analogia, diria que o céu é como o serviço público. Pouca paciência, muito trabalho, nenhuma disposição. Tudo meio velho, escuro e sem muita preocupação com o cidadão que paga os impostos e, consequentemente, os salários.
O inferno é como uma empresa privada de ponta. Tem consciência que precisa se manter, por isso foca no cliente. Tem metas, estratégias e gestão. Não que o serviço público não as tenha, mas no inferno tudo parece mais compromissado.
Enquanto no serviço público (céu) tudo demora e, muitas vezes, é você quem tem que fazer andar todos os papéis (preces, novenas, idas e idas à igreja...), na iniciativa privada, eles te esperam, fazem tudo para o seu conforto e buscam fechar negócios o mais rápido possível. Burocracia mínima para uma máxiam satisfação (como assim?!).
Não sei, a ideia que eu tinha de céu e inferno era outra.
Em nenhum momento ela dá a entender que pode ouvir meus pensamentos, mas com educação, tato e finese ela os interrompe.
- Dr. Aderlei, o senhor me desculpe. Eu vou pedir a gentileza do senhor sentar um pouco e um de nossos consultores já o atenderá.
E explica.
- É que hoje houve um acidente em massa numa bolsa de valores e aqui está uma loucura. Mas o senhor é VIP e um dos nossos melhores consultores o atenderá. Ele só foi pedir alguns documentos para agilizar para o senhor. Quer um café? Uma água?
Eu estava cabreiríssimo e, por estratégia, resolvi não falar - e pensar! - nada.
Agradeci o café, a água e sentei.
Não demorou e veio outra moça. Tão gentil e sorridente (e gostosa) quanto a da recepção.
Perguntou se eu não queria tirar as luvas, mais uma vez, me ofereceu água, café e pediu desculpas por uma demora que não existia.
Eu que sempre reclamei de atendimento, não podia falar nada. Ali era perfeito.

A minha cabeça doia, meu corpo não respondia, minha mente morria no congelamento de pensamentos conflitantes, perdidos, confusos e sem nenhum sentido.
Me perguntava muito se realmente eu merecia estar no inferno e via como o ser humano é o bicho mais estranho do mundo.
Vejam que mesmo o céu sendo "feio", frio e sem nenhum glamour e mesmo inferno sendo o que há de melhor em termos de atenndimento, luxo e aparente boa vida, eu queria o céu. Claro, desde pequeno aprendi que o céu é dos justos. Eu queria ser justo. Talvez.

Lá "embaixo", finalmente, o tal dr. Fulano que pediram para chamar chega. Se passam 12 horas desde o acidente. Aquele homem alto, forte e de brilho ímpar já chega brigando. Reclama por terem rasgado uma roupa tão cara sem necessidade e pergunta porque os procedimentos de rotina, para um caso como aquele, não haviam iniciado.
Exames, coletas para mais exames. Aparelho quebrado aqui, exame sem examinador ali e ele faz, pessoalmente, o possível para saber da situação e cuidar de mim.
Constatou que não haviam fraturas, mas verificou que eu estava em coma.
Receitou medicamentos, procurou a assistente social para saber se ela tinha algum dado que pudesse ajudar e nada.
20 horas após o acidente e meu estado era estável. Só precisava sair do coma e contar a minha história.
O único senão é que havia a possibilidade de eu morrer a qualquer momento. Isso era comum em acidentes de moto sem fraturas, hemorragias e com coma.

"Mais abaixo" eu era recebido por um "moço" sorridente que se apresentava como o consultor que cuidaria do "meu caso". Confesso que meu incômodo era tanto que não ouvi o seu nome. Apertei sua gelada mão e fui conduzido a uma sala com mesa imponente, grande, cadeiras confortáveis e ar na temperatura correta.
Ele me convida a sentar, olha papéis, olha um moderno computador, sorri e manda a bomba:
- É verdade, dr. Aderlei, a priore, o seu lugar seria aqui. Só que - ele fala, coça o ouvido, me olha, olha para o computador - eu acho que não é por aí.
E segue:
- Bem. O senhor me dá dois minutinhos e eu confirmarei alguns dados com o meu gerente, pode ser?
Não respondi nada. Meu estômago estava nas costas. Essas situações me deixam com uma fome absurda. Mera fuga, mas esse, também, sou eu. Ou era. Já não sei.
Quando ele chega à porta o gerente já estava indo para a sala. Ali mesmo confabulam, trocam informações. O consultor queria fechar mais uma, porém, o que eu entendia era que o gerente não me queria ali.
Entre balbúcios eu ouvia o consultor dizendo que, para a carreira dele, seria importante, mas o gerente alegava que ele tinha que pensar no todo. Na empresa, na equipe, no todo.
Depois de muita conversa, o gerente entra, se apresenta, aperta minha mão, diz que é um prazer enorme me ter lá, mas que há um equívoco.
Segundo ele, eu teria que estar no céu e, pedindo mil desculpas, diz que fará contato com o céu para resolver a situação.
Ele vai para a sala ao lado, pega o telefone e pelo que entendi o fone estava com problemas (nem tudo é perfeito, não?) e ele teve que usar o viva-voz. Consegui ouvir a conversa.
Depois de algumas transferências é o que segue:
- Alô.
- Chico velho! Fala ele com um tom pra lá de amistoso, político e com ar de quem precisa de algo a qualquer preço.
- Exu! Para você eu sou São Francisco. Me respeite. A voz era séria, fechada e até um tanto estressada.
- Que isso, Chico... Relaxa que a vida é boa, meu amigo.
- Não sou seu amigo e só vivo no coração dos meus fiéis.
- Olha a possessividade, hein. Isso não é bom para a sua imagem, irmão. O tom era irônico e de quem não está nem aí para a recém levada comida de rabo.
- O que você quer?!
- Boa! Vamos trabalhar que é isso que importa. Seguinte: Estou aqui com um moço. A primeira entrada foi aí e enviaram pra gente aqui, mas isso tá errado, Chico.
- Vou ignorar o fato de eu já ter pedido para me chamar de São Franscisco (e de Assis!!!), me passa a RE.
- Que porra é essa?
- Registro de Entrada.
- Ah sim! Vocês são cheios de nove horas, hein. RE, sei... Perai que vou ver a ficha. Passa-se alguns momentos e ele segue. Onde acho isso?
- Canto superior direito, letras grandes.
- Ah! Em vermelho?
- Aqui só imprimimos em preto e branco e em papel reciclado.
- kkkkkk Êta misséria! (o exu era um zombeteiro, de fato). Aqui usamos papel de primeira linha, tinta especial e, a bem do luxo, que vocês fiquem no lixo!
- Achou? São Francisco literalmente ignora as investidas do gerente de pessoal do inferno.
- Claro que achei, não sou cego como muitos...
- Então me passa, oras.
- Calma... Nunca ouviu a máxima "devagar com o andor que o santo é de barro"?
- Por favor, não tenho o dia todo.
- Nem eu, mas que trabalhar é chato, é, vai.
O outro lado silencia e ele segue passando alguns números.
Anota, analisa, digita, digita e o Exú interrompe.
- Por que essa demora, ow!?
- O sistema saiu do ar.
- Ele solta mais uma de suas gargalhadas e manda o alfinete - Eh vidinha maiô meno!
E ainda tenta aliciar o santo. - Aqui, como estão as coisas aí? Esse sistema de vocês é muito ruim. Não sei... Mas aqui você já entraria como gestor e, com certeza, logo chegaria a presidente de alguma planta nossa. Gente trabalhadora como você, aqui, é jóia rara e o Homem dá valor a essas coisas, sabe?
São Francisco o interrompe.
- Menos, por favor, menos... Estou bem aqui e daqui não saio.
- Sei. Não quer largar o osso, né?
Totalmente ignorado São Francisco segue como se nada tivesse ouvido:
- Ah! O sistema voltou. Aqui está tudo certo. Ele manda a minha ficha:
Aderlei, homem, brasileiro e blá, blá, blá...
É isso mesmo, mais de 470 requisições para que ele fosse para o inferno. Aí está. Nada de errado, pois.
- Que nada de errado? Que nada de errado?! Exu perde a posse, o humor e grita ao fone.
Cadê as coisas boas que ele fez? Cadê a vida sem roubos, sem agredir ao outro?! Cadê as boas ações? O cara foi escoteiro a metade da vida, ow! Era religioso! Bom homem, bom homem, bom homem, Chico, bom homem.
Quero ver! Quero ver essas requisições!
Instanteneamente o computador à sua frente abre uma janela avisando que estava fazendo download de dados.
Rápido, minha ficha baixa.
Eles discutem algumas das requisições.
Exú alega que uma foi por orgulho ferido, outra porque a pessoa queria ficar e eu parti, outra por isso ou por aquilo. Realmente a ficha não era de um santo, mas me pergunto se era, realmente, de um diabo.

25 horas após o acidente.
A assistente social tenta ligar para outros hospitais afim de saber se alguém procurou uma pessoa com as minhas características. Fica intrigada com a minha cara mesclando seriedade e sorriso. Abisma com o fato de ninguém ir atrás.
Mais uma vez faz uma busca na internet, acha o blog, tenta pegar os dados das pessoas que fazem comentários e nada. Tudo muito fechado. Misterioso, até.

O bate boca entre os dois ia alto.
A verdade é que ninguém me queria. Nem o céu, nem o inferno.
A verdade é que eu estava muito preocupado.
A verdade é que, pela primeira vez, eu via um problema sem a menor condição de eu mesmo resolver.
Não sabia se me sentia péssimo por não poder entrar no céu ou se me sentia bem por não ser aceito no inferno.

Foi Exú quem começou a negociar uma saída para o impasse.
- Seguinte, vou te falar a verdade, tá?
- Hã. Totalmente incrédulo, São Francisco nada fala, só solta sons.
- Esse cara não é bem vindo aqui. O Homem não quer concorrência, sabe? Acha que seria desleal e péssimo para os negócios, entende?
- Entendo, entendo sim, mas o que eu tenho a ver com isso já que aqui, com essa lábia, viraria santo em seis dias. No sétimo descansaria com todos nós servindo cafezinho para ele? Repito: O que eu tenho a ver com isso, Exú?
- O que você tem a ver?! O que? Porra, olha o quadro, cacete! Exú se revolta e perde a linha de novo. A verdade é que aquele homem alto, forte, musculoso e de capa preta adorava bater no peito, falar grosso e aos berros.
- Por favor, controle-se.
- Me controlar? Me dão uma bucha dessas e você quer que eu me controle? Tá achando que "no meu" é refresco? Porra, é pimenta e tá toda no meu rabo, cacete!!!
- Sim. São Francisco, responde vagamente pois, silenciosamente, rezava pela alma de Exú. Em vão.
- Sim, o cacete! Vamos resolver isso!
- Vamos. Aqui ele não entra, logo, deixa ele aí.
- Putamerda! Parece que você não entendeu! Aqui não rola, véio!
- Com toda calma do mundo, sem alterar o tom de voz, São Francisco é, pela primeira vez irônico. - Aqui, também, não rola, mano.
- Vai se f... Tá tirando uma com a minha cara?
- Pois é, né?
Ambos ficam em silêncio por algum tempo. Exú queria briga, São Francisco era o típico funcionário público: Diz que não é ali, que não tem jeito e se cala. Se instigado, volta às mesmas respostas, no mesmo tom de antes e... se cala.
Exú quebra o gelo e solta as palavras como bombas para cima de São Francisco.
- Ah! Eu sabia! Eu sabia! Alegre ele alfineta: "Não há bem que sempre dure, nem mal que se perdure", meu caro!
E continua falando, abrindo as fichas e enviado-as para São Francisco:
- Ele fez esse bem a essa, fez essa ação maravilhosa a essa outra aqui. A pedido de vocês ficou na vida dessa outra para reajustar isso acolá.
Meu caro! Como Vês, o homem era ligadaço à vocês e era um instrumento da vossa paz. Ironiza.
São Francisco não fala nada. Seu sistema é lento e as fichas ainda não haviam chegado.
Quando chegou e ele as leu respondeu:
- Que, que é. Agora quer transformá-lo em santo?
- Olha, não duvide. Vou pessoalmente na terra, aciono meia dúzia de repórteres, faço aparecer uma dúzia de fãs no blog, pego quem me deve, é pactuado com a gente e trabelhe nas redes de TV e em menos de 24 horas esse cara estoura como o maior sucesso da internet mundial. Faço lerem seus textos como um verdadeiro baú de ensinamento e aprendizado. Não vai ser difícil pegar meia dúzia de loucos que afirmem que suas vidas mudaram por causa do blog e que sentem muito o falecimento dele.
E ainda tem mais, meu amigo: Para apimentar faço aparecer umas 300 pessoas, dessas 470 requisições, rezendo aos céus pedindo desculpas e alegando que ele era um homem tão bom...
São Francisco estava diante de um impasse. Tudo mudou. Se antes eu somente tinha bilhetes para o inferno, agora eu tinha créditos suficientes para ser VIP, também, no céu.
Gelei mais uma vez. Sobretudo pelo silêncio que imperava na sala ao lado.
São Francisco quebra o gelo.
- Tá, o que você quer fazer?
Exú gargalha. Estava com fome e tinha a faca e o queijo em mãos.
- Aqui eu não o quero. Pronto.
- Aqui não podemos aceitá-lo.
Ficaram em silêncio.
Mais silêncio.

30 horas após o acidente.
A assistente social se encanta com o que está escrito no blog. Chama a psicóloga, sua amiga, para ler. Outros são chamados e todos ficam intrigados com o fato de ninguém me procurar.
Foi um enfermeiro, que estava no primeiro mês de um curso, que duraria três meses,  para terapeuta alternativo quem deu a saída. Com ar de quem sabe o que fala, voz pausada e olhar penetrante ele solta:
- Não sei... Mas diante da minha experiência, e pelo que vejo no blog, esse cara é um desses artistas loucos, solitários, perdidos em si mesmo. Arrg, até arrepio!!!
Olha isso:

"Botões, cá com os meus.
Algumas coisas só o poeta vê.
Só o poeta vê algumas coisas.
Coisas algumas só o poeta vê.
Só o poeta algumas coisas vê.
Vê algumas coisas. Só o poeta.
O poeta vê só algumas coisas.
Só coisas o poeta vê. Algumas.
Algumas, o poeta vê coisas. Só.
Poeta, só coisas, algumas vê. Ó.
Faltou alguma coisa que o poeta não viu?

AsF 309110008"

Nada com nada, gente! Não tenho dúvidas! Esqueçam de alguém aparecer.
Ele fala nervoso, incomodado com o blog e as mulheres o olham até que a assistente social mostra outro.
- Ah, não, gente. Olha isso como é lindo.
"Jaridna
Por amor, aceito a lagarta mesmo antes de saber se virará borboleta.
AsF 2011"

Todas suspiram e assim vão mostrando as obras, umas às outras.
Até que uma solta, emocionada. - Ah, preciso colocar isso na minha comunidade do Orkut!
Uma outra fala que vai postar outra obra no Facebook e uma terceira já entra no e-mail e repassa para uma lista de mais de 2 mil contatos.

Exú é avisado desse fato e o mostra a Francisco.
- Vê! Vê o que falei?! Isso é mole pra nós, mano!
Ele tenta ser irônico com São Franscisco. E conclui:
- Bem... Posso até pensar em alguma coisa. Posso até já ter alguma coisa em mente, quero dizer, se você estiver disposto.
São Francisco continua sério, voz de preocupado e direto.
- Diz qual é a sua ideia.
- Nem você nem eu, oras!
- Como assim? Fala logo Exú!
- Calma... Calma que tem um gênio pensando, Chico velho. E segue com seu ar irônico: - Por falar em gênio, você ainda usa aquele cortizinho sem vergonha que faz tanto sucesso entre as religiosas?
São Francisco solta um bufão de ar - humpf! - e nada fala. Exú segue com seu plano mirabolante:
- Pense comigo: Se ele não pode entrar aí, se o Homem aqui não quer concorrência desleal, nós só temos que deixá-lo viver, pô!
Ele não quebrou nada, logo o corpo está em dia, a gente reequilibra a conta dele, deixa no empate, dá mais um prazo e ele que se vire. Se fizer merda de novo, vem pra cá e pronto. Se fizer coisas boas - espero! kkkkk- vai praí e, também, pronto!
São Francisco para, pensa e vê que não há uma outra saída senão fazer um acordo. Aceita.
- Ok, eu aceito, mas e essas doenças que ele tem, idade e etc e tal?
- Relaxa que doença a gente regride, dá para viver mais um caminhão de tempo, idade?! Que idade, pô?! O cara é um menino!!!
Vamos liberar logo ele, Chico velho.
- Tá feito. Mais alguma coisa?
- Só mais uma.
- Fala.
- Beijos meu amor.
São Francisco desliga, Exú gargalha.

Exú, completamente suado, exausto, mas com a testa aliviada volta à sala onde eu estou e conversa comigo.
- É seu Aderlei, realmente houve um engano, viu? O senhor é gente boa. Tem lá seus pequenos delitos, mas também tem o seu lado bom, né? Um homem digno, eu vejo!
Eu olho totalmente desconfiado e nada falo. Ele segue.
- Mas conversando com o pessoal lá de cima, o Chico velho é meu amigo, sabe? Eles me passaram que ainda não é a sua hora.
O senhor vai passar no nosso setor de reintegração, vai receber um banho daqueles, sabe? Doença?! Vai equilibrar até as dores de cabeça! Vai sair tinindo!
Volta, vive mais um montão e, por favor, só faça coisas boas, viu? Ele gargalha e conclui: Aqui o senhor não é bem vindo.
Como eu não ri, ele segue gargalhando, me dá um tapinha nos ombros e pergunta se eu entendi a piada.
- Entendeu? Entendeu? "aqui o senhor não é bem vindo", mais gargalhada.
Não achei graça, mas entendi que havia acabado a minha desgraça.

36 horas após o acidente.
A assistente social entra correndo pelos corredores do hospital, abre a porta da enfermaria qual uma louca e, com brilho nos olhos, me sorri com todo o corpo.
Ela era uma primavera. Estatura mediana, cabelos vermelhos (naturais), sardas por todo o rosto e busto, vestido escolhido ao acaso, florido em cores, salto elegante, pés para fetichista nenhum colocar defeito.
- E aí moço sem ninguém.
Eu não sabia o que responder, apenas - e amarelamente - sorri.

Com uma intimidade que eu não entendia, ela sentou à beira da cama e me contou o que se passou naquelas 36 horas, explicou que, se tudo corresse bem, eu já sairia no outro dia. Perguntou se eu queria ligar para alguém e fez cara de espanto quando eu disse que não. Ela insistiu, me mostrou seu telefone e eu ratifiquei que não havia para quem ligar.
Intimamente, é claro que pensei em algumas pessoas, eu até quis ligar, mas estava vivo na minha cabeça todo aquele tramite entre céu e inferno. Estava claro que nenhum dos dois me queria, logo, aqui é meu lugar e aqui eu tenho que ficar. (mas) Limpo.

48 horas após o acidente.
A assistente social, agora, tinha nome, se mostrara minha amiga e até me deu uma carona até em casa, mas claro, isso é outra história.

AsF102121754

4 comentários:

Lucia Matsuo disse...

Ai meus sais. rs Rimos tudo aqui. A Vera disse q vc é doido de pedra e depois de ler isso ficou sem duvidas. kkkkkk
"o Homem não quer concorrência" foi ótimo, mas meus Mestres dizem que vc é do Bem (Programa Bem Estar kkkk).
Bjs, se cuida e liga, tá?

Anônimo disse...

"470 requisições"!? 471. Não contabilizaram a minha, Aderlei?

luiza disse...

Orando:


Que isso seja um conto, que o Aderlei tenha vaga no céu e que ele tenha pra quem ligar quando a assistente social perguntar.

Amém.

Anônimo disse...

lha a brincadeira cabeção... Pq seu tel tá desligado? Tá td bem? Quem é a (piriguete) assistente social? Me liga.

Gabi

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