02. A Casa de Madalena - O quarto
Tóc, tóc, tóc!
Eram fortes as batidas na porta
do meu quarto. Fingi que não ouvi, afinal era domingo.
Tóc, tóc, tóc, - Mada, vamos que
está na hora da missa!
Era meu pai, só ele me chamava de
Mada. Eu era duas naquela família. Para papai era Mada, para mamãe Lena. Para
mim mesma eu não era ninguém.
Papai era assim, fazia questão de
ir a missa de Domingo. Mamãe era filha de Maria, mas... não deixava de reclamar
todas as vezes que tinha que ir às reuniões do grupo.
Minha mãe nasceu e se preparou
por toda uma vida para casar, ter um marido e cuidar dele, o resto era só, como diz a propaganda: Foto meramente ilustrativa, ou seja, resto. E ela nunca gostava de nada que fosse resto. Às vezes tenho pena do meu pai,
mas as vezes tenho pena da minha mãe, mas a verdade é que, às vezes, tenho pena
da máquina de escrever...
Tóc, tóc, tóc Agora eram fracos.
- Lena, filha... Era minha mãe. Devia ter visita
em casa. Sua voz estava
doce demais.
- Já vou... Falei fingindo voz de
sono.
Me virei para o lado, ia
adormecer quando Liko, meu urso de pelúcia e plástico, e que tremia de frio,
quando apertado um botão, me despertou o mundo proibido.,
O joguei para o lado, mas qual
mulher de marinheiro logo o peguei de volta. O que ele podia me dar eu queria
receber. O que eu queria receber... Só ele podia me dar.
Não ouvi a máquina de costura da
mamãe, não ouvi a de escrever do papai, mas a tremedeira de Liko ouvia-se a
quilômetros de distância...
O pressionei entre as pernas e
silenciei... Ele estava mudo, mas ela estava tão ou mais falante que bêbada a
beira de cais.
Tóc, tóc, tóc. De sobressalto
protegi Liko e com voz embargada gritei: - Estou quase... pronta.
Papai respondeu: - tá estamos
indo então e a encontramos lá.
Bem feito! Nem respondi e dei
toda a atenção ao barulho do carro que saia da garagem somente uma vez por
semana.
Não mais. Não menos. Nunca mais
que uma. Papai sempre andava de ônibus. Era mais seguro, gastava menos e... do
jeito que ele dirigia, também, era mais rápido. Carro era para ocasiões
especiais! Como andar três pequenos quarteirões para ir a igreja. Papai não
acumulou posses nessa vida, mas na igreja ele era o filho do deus e precisava
mostrar que seu pai fora generoso consigo.
Ele assumia-se católico, ia as
missas, mas sempre que o livro estava pronto, levava a um numerólogo para saber
se o título estava de acordo, depois e sem voltar com ele em casa, passava numa
mãe de santo para benzê-lo e por fim, dava alguns exemplares a uma
"amiga" cartomante para que ela "distribuísse". Eu não
falava nada, só ouvia o barulho da máquina de escrever sendo surrada ao bel
prazer dele, sentia dó dos tecidos que minha mãe enfiava agulhas, linhas e
ainda conferia para ver se ficaram bons...
Liko não me deixou desviar o
pensamento e como se tivesse vida própria, de amante sem tempo, aumentou a
vibração.
Sofri por dois minutos. Amei,
odiei, amei de novo, odiei de novo. Pensei mil coisas, dois minutos e dois mil
homens. Todos ali. Todos meus. A se consumirem em mim.
No fundo eu sempre quis ser
mulher da vida, no fundo sempre quis ser mulher na vida.
Dois minutos e eu pensando
em mulher... Liko me
fazia mulher em dois minutos. Melhor que sexo de saquinho, maior que bonecas de
cabeças duras e braços largos.
Quase morrendo, quase pronta para
o meu amante maior, Bhoeme e... Tóc, tóc, tóc - Mada!
Não acredito! Joguei Liko, sem
desligar, para o canto da cama, me enrolei no robe e fui até a porta pronta
para cometer um assassinato. Afinal, depois eu estaria na igreja e poderia me
confessar, pedindo a absolvição de Deus.
- O que você quer, Flávio?
Perguntei com a faca na mão e já enfiando na jugular daquele que se fez passar
por meu marido e afugentou meu amante.
- Seu pai mandou que eu viesse te
acompanhar. Ele falou e já foi forçando a porta para entrar. Ensanguentado,
cairia bem no meio da minha sala. Primeiro eu olharia toda aquela cena, depois
ficaria mais dois minutos com o meu amante. Pediria que Liko limpasse tudo e
sugeriria que Bhoeme me possuísse enquanto o sangue ainda escorria quente...
- Flávio, dois minutos! Falei
enquanto ele sentava no largo sofá da sala. E quando ele me deu as costas, ainda
cambaleando, eu dei mais alguns golpes. Sabia que depois eu teria que chorar
muito para convencer a polícia de que tudo não passou de um grande susto.
Enquanto eu escondia o Liko,
Bhoeme sairia pelos fundos. O beijaria intensamente e pediria para ele ir, mas
o faria prometer que voltaria.
- Você ainda nem está pronta.
- Ah Flávio, vai catar coquinho,
moleque!
- Moleque, não. Tenho 19 anos e
sou mais velho que você! Homens... não aceitam a verdade. Sempre tem que ser
vistos como generais de exército de muitas batalhas... Um general! Muitos
homens...
Puxei meu braço das mãos dele e
olhei bem fundo em seus olhos.
- Me respeite! Disse firme e ele
me soltou... e ainda pediu desculpas.
Ah! Ah! Ah ! Bhoeme me daria um
tapa na cara e ainda me faria ajoelhar antes que ele partisse... Liko
desligaria sem nem me dar atenção, mas Flávio me pede desculpas e ainda abaixa
a cabeça...
Eu sentei sobre seu corpo, pois
estava ensandecida e apunhalei ainda mais. Ele cairá de costas e eu sentia a
faca tocar seus ossos. Bhoeme me segurou e disse: - chega da sede de sangue que
agora quero te beber. Me atirou ao lado do já defunto e se jogou sobre mim. Seu
peso, seu perfume barato, certamente dado por alguma qualquer como eu,
misturava-se ao cheiro do produto que usava para manter seus cabelos
impecavelmente arrumados...
- Vai Mada!
- Ah Flávio! Eu disse e sai
andando para o quarto. Ia me trocar. Vi. Não. Eu não vi que Flávio vinha atrás
de mim e já entrei no quarto tirando o robe; corri para a cozinha, eu tinha que
me lavar... Ligar para polícia, arrumar um álibi...
Flávio estava encostado na porta
e eu tirei a parte de cima da minúscula camisola bem devagar...
Ele estava atônito, incontido,
pasmo, mas não duro. Não pronto. Generais sempre estão prontos. Para as
guerras.
Me virei para abrir o armário e
fingi que ainda não havia visto-o. Dois minutos! Ele teria para me convencer a
trair Bhoeme, dois minutos. Liko nada falaria e se Flávio fosse bom o deixaria
voltar ao meu quarto. Mas... teria que jurar não falar nada a Bhoeme. Se bem
que. Bhoeme... Saberia de tudo só de olhar em meus olhos... Ele era vivo! Único
homem que já tive até hoje. O único de verdade. Foi ele quem usou meu pai para
me dar o Liko. Sei que foi.
Abri a porta do armário, peguei
uma blusa e tirei o pequeno short que me escondia a calcinha de algodão. São
recomendadas pelos médicos e como não quero ir a esses tarados, faço tudo que
mandam.
Flávio se alisava e nem percebia
que, pelo mesmo espelho que ele me olhava eu o via também.
De calcinha, quase nua, bicos
rijos; quase pronta. Comunicaria a ele o final de seus dois minutos e o
deixaria falar. Se fosse convincente o mandaria entrar, se vacilasse avisaria
que Bhoeme saberia de tudo e seguramente passaria a navalha em seu pescoço.
Virei rápido e mais rápido ainda
soltei um Ah! de espanto e surpresa. Eu fingi a morte ao palidecer minha pele,
roborizar meu rosto e arregalar meus olhos cor de céu. Queria que fossem rosas.
Cor de menina...
Flávio sorriu. Era sorriso de
quem sabia amar, mas morto não ama. Bati a porta e peguei Liko por dois minutos
mais e em mais dois minutos eu estaria na missa. Não para confessar. Se cometi
algum crime me redimi a tempo. Desliguei o Liko e sai. Para a Igreja.
E Flávio? Veio atrás de mim. Era só isso que sabia fazer.
MadalenaDee
Mada por parte de pai, Lena pela
da mãe e
Dee por pura rebeldia.
Para os íntimos, Ma dá. Para os
inimigos, Me dá. Para os neutros Madalena
Dee.
By
Aderlei Ferreira
08/FEV/2006