Abrindo as portas.

Seja bem-vindo(a) ao meu Labirinto!
Aqui criador e criaturas se fundem e confundem até o mais astuto ser. Olhe querendo ver e não tema o que pode ser visto, afinal luxo e lixo diferem em somente uma letra - nem tão diferentes assim. Uma dica: Se perca para se achar. Se ache e pouco se dará a permissão para perder-se. Permita-se as permissões a bem das possibilidades.
Bom mergulho andarilho(a)!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ontem. Hoje. O copo amanhã

Ontem. Hoje. O copo amanhã
Inspiração: Tabacaria
Fernando pessoa/Álvaro de Campos

Hoje nada quero, pois que ontem tudo tive.
Hoje nada espero, pois que ontem tudo me veio.
Ontem vi pássaros na praça, crianças a sorrir, mães a cuidar.
Hoje vejo o cinza do dia vazio a me assombrar o coração vadio.
Ao errar a letra de vazio tudo me falta, tudo vadia
e a imgem que tens de mim é nada afora um tudo que eu pude ser (devo ter sido).
Em ti sou pó que gruda no armário, sou pensamentos de passagens.
Sou uma rua vazia com semáfaro desligado. Pode passar sem freio.
Não precisa olhar para os lados, eu não estarei esperando a minha vez.

Para ti sou um nada vazio, um copo vadio de tendinha qualquer que roda
na mão dos fregueses e volta para a lavadeira com a cara mais deslavada.
Bradas meu nome em teus sonhos, mas é incapaz de acordar e pensar em mim.
Qual conto deixas pistas para não se perder. Já perdeu-se de si, Maria, pois
que não sou João. Não eu. Eu sou meu. Muito eu e só meu. Talvez até só demais.
Um copo vazio que depois de quebrado é usado somente para apoiar o que nenhum outro apoia.
Teem pena de me jogar fora. A lavadeira me tem carinho, mas o dono do bar nem sabe que existo.
De certo, se soubesse já me teria dispensado. E brigado com a lavadeira que usa um qualquer depois de tantos outros à disposição. Ela me tem carinho, ele não me tem, por isso me despreza.
Eu insisto em estar aqui. Nesse bar em ruas vazias, com povo vadio.
Não me olhes. Não do jeito que estou. Não estou bem aqui largado sendo usado apenas pela lavadeira.
Não me olhes hoje, pois que ontem fui muito mais. Não pense em praças cheias de luz, pois que dos bebados sou.

Hoje nada quero. Hoje nada espero.
Hoje tudo quero. Hoje tudo espeto.

Ainda assim me vejo luz, pois que do Pai ainda sou filho e com o diabo me recuso a pactuar.
Algo resta em mim que a vida não toma, Maria. Mas ainda não sei ser João.
Nem mesmo sei se quero sê-lo, pois que prefiro comer o pão a jogá-lo no chão para marcar caminhos sem volta, pois que da volta que o mundo dá, dou eu a volta que posso dar. Nos mundos.
Os dias me faltam, as luas me visitam com garrafas sem copo. Alegro ma non tropo.
E eu vou de pinga em pinga até embebedar os que aqui veem me visitar.
Não sou do bar, mas aqui passo meus dias. Aqui.
Aqui vejo a alegria e a tristeza de ser o que é.
O pai que tarda a chegar para o filho.
O marido que evita a esposa.
O filho que desconjura o pai.
O promovido que agora será chefe e se vingará.
O chefe que será mais chefe e mostrará quem é.
A filha que ama o pai, mas não o conhece. E dança nua para passar o tempo na rua vazia. Vadia.
O músico que toca porque não se toca. E quando se toca, muda o tom, mas volta à mesma música.
A balconista que, de tanto ouvir, virou terapeuta sem nem saber aconselhar. Manda à morte seus mais fiéis fregueses. Se diz religiosa, prega a paz pensando na guerra que moverá em família.
O jogador que mesmo só dando bola fora não sai da compulsividade do jogo.
Todos veem aqui, Maria. Todos veem me ver.

Um copo quebrado. Hoje.
Um homem quadrado. Hoje.

O que sou, Maria?
O que sou em mim mesmo?
Amante da lavadeira que me recicla, e usa como quer, e não me deixa mais rodar o bar de boca em boca só para me ver sofrer jogado em um canto como espectador?
Quem sou eu para mim mesmo?
Alguém esperando abrir um semáfaro desligado em uma rua vazia? Vadia.
A dor é minha. Ontem na praça. Hoje no dia cinza.
A percepção é minha. Ontem e hoje.
O julgo é meu e confesso que não fui preparado-me para julgar. Sempre corri do martelo que agora me falta para dar minha própria sentença.

Ontem já foi. Hoje está indo.
Agora me resta o futuro do amanhã. Já que nesse texto ele recusou-se a entrar.

Aderlei Ferreira
25121410

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